quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Distinta Vida de Nietzsche e Schopenhauer





Existem pelo menos duas maneiras de abordar a relação entre música e vontade. A mais comum é aquela que Nietzsche interpreta em sua primeira obra "O Nascimento da Tragédia", obra esta que demonstra ainda a grande influência que Arthur Schopenhauer exercia sobre Nietzsche.

A partir de um certo momento Nietzsche começou a divergir em alguns pontos com Schopenhauer, pelo qual foi muito influenciado em sua juventude como mencionamos acima. A partir das divergências entre Nietzsche e Schopenhauer, nosso objetivo é marcar uma diferença fundamental entre suas estéticas, tendo com ponto central o acesso direto à Vontade que a Arte Musical teria em ambas.

Para Nietzsche, a arte é dotada de uma capacidade especial, que ficou conhecida como "Coisa em Si" e para Schopenhauer era identificado como "Vontade". A música seria então uma arte privilegiada diante das demais modalidades artísticas; mas também privilegiada diante da própria ciência à medida que, tanto o jovem Nietzsche quanto para Schopenhauer, a música é a única via de acesso à Verdade do Mundo, ou seja, a única linguagem capaz de comunicar o em si do mundo.

Estaria configurada assim o que o próprio Nietzsche chamou de "metafísica do artista".

A relação entre música e vontade em Schopenhauer se dá por via direta, enquanto para Nietzsche esta relação nunca é direta ou imediata, em vez disso ela é simbólica.

Deste modo, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre o caráter mediador do simbolismo em Nietzsche, podemos ver o profundo distanciamento entre os dois filósofos, o que por fim nos levaria, obrigatoriamente a rever o estatuto metafísico do pensamento do jovem Nietzsche delineando, o viés de uma possível transição da "metafísica do artista" (propriamente schopenhaueriana) em direção ao germe de uma "psicologia da arte" (notadamente nietzscheana).

Em sua obra principal, O mundo como vontade e representação, Schopenhauer, mantendo a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si, nos apresenta um mundo sob dois aspectos:

  • como fenômeno, o mundo é para ele apenas aparência: representação que obedece ao princípio de razão suficiente;
  • como coisa em si, porém, o mundo é pura verdade, uma força cega, sem razão e caótica, a qual nosso pensamento não pode acessar. O homem, como parte do mundo, é concebido como produto da coisa em si, ele é quem é movido pela vontade, pelo impulso e objetivação da vontade, que existe dentro de nós, segundo Schopenhauer, nosso pensamento para racional não nos permite qualquer acesso a coisa em si que seria nossa livre vontade, ela se encontra fora do domínio do"princípio da razão". Muito embora suas manifestações fenomênicas sejam submetidas a este princípio. Isto é possível apenas porque a própria razão é produto da vontade e, ainda que tal produto se encontre no interior da esfera do conhecimento, os mecanismos de produção permanecem, à luz da razão, uma completa incógnita.

No entanto, uma arte em especial para Schopenhauer, a música. Nela, mais do que em qualquer outra manifestação artística, se faz possível o acesso ao cerne do mundo; não mais por intermédio das idéias, mas de modo imediato. "Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a vontade como o são as idéias". Isto porque "Ela nos dá sua essência sem qualquer acessório, e, por consequência, sem qualquer motivo", por isso, para Schopenhauer a música é um exercício metafísico inconsciente no qual o espírito não sabe que faz filosofia.

Embora Nietzsche afirme que a música não é a aparência da vontade, e sim o inverso, poderíamos nos perguntar se em seu livro O Nascimento da Tragédia não há uma transposição onde Dionísio assume o lugar da vontade schopenhaueriana. Seria o caso de uma apropriação terminológica, onde Nietzsche diz à Dionísio para não dizer avontade, ao passo que diz vontade para não se referir àquilo que ele chama de Fatos Universais.

Essa transposição seria possível porque de fato há uma relação íntima entre a vontade de Schopenhauer e o deus Dionísio de Nietzsche, afinal, para este último, a essência da música é o próprio deus grego.

Paralelamente, em Shchopenhauer, a música é objetivação da vontade. Dionísio e vontade se encontram de maneira bastante relevante aqui, pois ambos são instâncias exteriores à cena, se encontram sempre em outro plano e não se manifestam senão através de uma materialização na arte musical. Sendo assim, Dionísio e vontade são transcendentes, são realidades propriamente metafísicas, que existem para além de toda aparência. Deste modo, Nietzsche, tal como Schopenhauer, permanecerão preso a um pensamento metafísico; muito embora, ao avaliarmos o papel que a música assume em cada autor, verificamos por fim que tais metafísicas se constituem de modo totalmente diferente.

Em Schopenhauer, a música é focalizada como um instrumento de contemplação da vontade porque ela é, ao mesmo tempo, a materialização da vontade (tal como um código pelo qual a vontade se manifesta), mas também é um anestésico, que nos faz ir além das idéias, a música é uma explicação perfeita para os conceitos do mundo. Para Schopenhauer mesmo se o mundo não existisse, ainda assim poderia haver a música.

Em Nietzsche, porém a música é focalizada em seu aspecto produtivo, como elemento fundamental para a realização da tragédia. Deste modo, é na obra de arte dionisíaca, que de certa forma liberta a vontade inconsciente dos humanos.

Por esta razão, dirá Nietzsche: "a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens". Ou ainda, é na força da música que se encontra a mais alta manifestação da tragédia, é saber interpretar o mito com nova e mais profunda significação; "Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música dionisíaca, e em suas mãos floresce mais uma vez, em cores como jamais apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um mundo metafísico".

Percebemos este caráter predominantemente produtivo da música não apenas ao longo da obra, mas também a partir, inclusive, do seu título, onde se lê: O nascimento da tragédia a partir do espírito da música.

Notamos ainda que estes diferentes papéis assumidos pela música se correspondem também com diferentes sentidos que a tragédia encontra nos dois filósofos. Deste modo, delineamos duas perspectivas:

por um lado a de Nietzsche, que vê na tragédia a expressão de uma alegria perfeitamente compatível com o caráter produtivo da música nietzscheana; e

por outro a perspectiva de Schopenhauer, que vê na tragédia apenas a "renúncia à vontade de viver", o "caminho da resignação" também compatível com o caráter contemplativo que encontramos em sua música.

Por isso, somos levados a considerar as palavras de Charles Andler: "Nietzsche tentou ser um interprete rigoroso e um adversário leal, mas ele nunca foi servo do pensamento schopenhaueriano".

Concluímos, que apesar de Nietzsche ter a princípio Schopenhauer como seu mestre e dele ter aprendido muito, ambos tinham visões diferentes sobre algumas teorias, como por exemplo na arte onde Schopenhauer via a música como a verdade interna do mundo, para ele na música não existe repetição de idéias das coisas do mundo mas se ouve a linguagem imediata e universal da coisa em si.

Portanto, que ainda que se manifeste em O Nascimento da Tragédia a mesma dicotomia metafísica de Schopenhauer (a mesma separação entre a coisa em si e fenômeno), a filosofia do jovem Nietzsche não compartilha em momento algum com a solução schopenhaueriana, pois a música em Nietzsche não é capaz de acessar a verdade interna do mundo. Dito de outro modo, embora Dionísio seja para a música nietzscheana o que a vontade de Schopenhauer também é para a arte dos tons, a música em Nietzsche se concentra em seu caráter produtivo, o que de modo algum garante o conhecimento da instância originária da qual esta mesma arte partiu. A música, em vez disso, exprime a vontade tal como se exprime um objeto, tal como se constitui um objeto que emana de si próprio, isto porque a música, como já foi dito, não é a aparência da vontade, e sim é a vontade a aparência da música. Vontade aqui significando não mais o caos originário (como em Schopenhauer), mas as sensações de prazer e desprazer que acompanham todas as representações.

Vemos, portanto, que a sutil distinção entre relação simbólica e relação direta somente pode ser compreendida a partir desta, já não tão sutil diferença entre o caráter contemplativo e o caráter produtivo da música - onde até a própria vontade passa a ser um produto da arte musical. O que por fim nos leva a encontrar, no pensamento metafísico do jovem Nietzsche, o viés de uma possível transição, localizando este primeiro Nietzsche em algum ponto entre Nietzsche e Schopenhauer.


Bibliografia:

Schopenhauer, Paerga e Paraliponema, cap. XI parag. 227

Schopenhauer, Jair Barbosa

Nietzsche, Nelson Boeira

O Pessimismo e suas Vontades, José Thomaz Brum

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