quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O último sortilégio




"Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou. 
Já repeti, nas pausas do amplo vento, 
As orações cuja alma é um ser fecundo. 
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. 
Só o vento volta onde estou toda e só, 
E tudo dorme no confuso mundo.

"Outrora meu condão fadava, as sarças 
E a minha evocação do solo erguia 
Presenças concentradas das que esparsas 
Dormem nas formas naturais das coisas. 
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.

"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada. 
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado ergUida,
Ou, em êxtase mágico perdida, 
Ao luar, à boca da caverna funda.

"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus. 
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

"E as longínquas deidades do atro poço, 
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço, 
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei, 
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa, 
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi 
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo! 
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, 
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"


Fernando Pessoa

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